Igor Fernandes de Alencar


DA MARGINALIZAÇÃO À PATRIMONIALIZAÇÃO: A “ARTE DA VADIAÇÃO” RESSIGNIFICADA NA RODA LIVRE DE CAXIAS


Esta escrita articula História e Ensino de História Regional na perspectiva da Educação Patrimonial, como possibilidades de efetivar a promulgação da Lei 10639/03. Objetivamos perceber a capoeira, expressão cultural negra brasileira, enquanto tema para a História Regional e também como prática educativa social (BRANDÃO, 2000, apud DAMASCENO, 2004). Para tanto, convencionamos analisar uma das rodas de capoeira mais importantes do Brasil, a Roda Livre de Caxias.

A Lei anteriormente mencionada foi complementada em 2008 pela Lei 11645, sintetizando o estimulo às discussões acerca da educação para as relações étnico-raciais, e, dentre várias perspectivas e disposições, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), visando transmitir aos estudantes do ensino fundamental e médio a História da África e do Brasil negro e indígena. A partir disso, propõe-se ainda, a revisão dos currículos, conteúdos e práticas pedagógicas. Essas mudanças são instrumentos de conquista, neste caso, reivindicações atribuídas aos movimentos sociais negros brasileiros, que vêm pautando suas demandas, principalmente no que concerne a melhoria e a inserção de forma positivada na educação brasileira.

As indagações sintetizadas nesta proposta são de analisar a capoeira e seus saberes cotidianos, em consonância com possíveis práticas educacionais. Reportando-nos aos fazeres culturais de homens e mulheres praticantes desta expressão cultural, bem como articulando estas experiências enquanto proposta da didática dentro do currículo escolar.

Na circularidade do tempo 
A capoeira é uma manifestação cultural afro-brasileira muito conhecida em todo o Brasil e também de reconhecido valor internacional. No entanto que, no dia 26 de novembro de 2014, A Roda de Capoeira foi inscrita na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). O processo de identificação, inventário, e medidas iniciais de salvaguarda desta expressão cultural, realizados em âmbito nacional, anteciparam este reconhecimento externo. 

“A Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira foram reconhecidos como patrimônio cultural brasileiro por meio da inscrição no livro de Registro das Formas de expressão e no livro de Registro dos saberes, volume primeiro, respectivamente, do instituto do patrimônio histórico e artístico nacional, em 21 de outubro de 2008, conforme decisão proferida na 57ª Reunião do Conselho Consultivo do patrimônio Cultural, realizada no dia 15 de julho de 2008.” (BRASIL, 2014, p. 17).

Hoje é possível verificar o reconhecimento legal da capoeira enquanto Bem Imaterial. Mas, quando nos lançamos em perspectiva histórica sobre a trajetória desta expressão cultural negra, verificamos um processo constante de resistência dos praticantes de capoeira, duramente perseguidos e marginalizados.

O código criminal do Império do Brasil, a primeira codificação penal brasileira, datada de 1830, não fazia referência explícita à perseguição dos praticantes da capoeira, mas os chefes de polícia os enquadravam no capítulo que tratava dos vadios e mendigos. Com o fim da escravidão e o início da República, a capoeira é inserida, “com todas as letras”, no Código penal Brasileiro, por meio do Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, que assim dizia:

“art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor ou algum mal. pena: de prisão de dois meses a seis meses.” (BRASIL, 2014, p. 26).

Na primeira metade do século XX, estimulada pelos interesses nacionalistas do então presidente Getulio Vargas, a capoeira passa a ter status de “luta brasileira” vigorado na Lei Federal 3.199 de 1941. E, como atividade desportiva pelo Conselho Nacional de Desportos em 1972 (Deliberação 071 do CND). Mesmo assim, seus praticantes ainda carregavam um estigma imputado a eles desde o século XIX. Eram tratados pelos órgãos de repressão como “marginais”, “vadios” e “vagabundos”.

Na década de 1970, dois processos influenciariam profundamente os rumos da capoeira: a esportização que submeteu a prática da capoeira às regras do pugilismo; e a folclorização da cultura negra, associado ao crescimento da indústria turística.

“O primeiro foi o início do processo de esportização da capoeira, homologado em 1972 pelo Conselho nacional de Desportos – CnD, que submeteu a prática da capoeira às regras do pugilismo.  O segundo está relacionado ao processo de folclorização da cultura negra na Bahia, associado ao crescimento da indústria turística em salvador, que, nos anos 1960 e 1970, introduz no repertório de atrações para a sua clientela, além das belezas naturais dos monumentos e do barroco das igrejas, as manifestações da cultura negra, principalmente o candomblé, a capoeira e o samba” (BRASIL, 2014, p. 113).

O jogo antes praticado em ruas, quitandas e nas festas públicas, vai cedendo lugar para as academias e os espaços privados. Assim, aqueles interessados em praticar capoeira agora deve se vincular a uma escola ou grupo. Regras e procedimentos que exigiam assiduidade e frequência são procedimentos destes espaços.

A didática da resistência na Roda Livre de Caxias
A rua, que era o espaço próprio para o exercício da “arte da vadiação”, passou a ser utilizada, sobretudo, para demonstrações, como propaganda dos grupos privados. Neste cenário é que nasce a Roda Livre de Caxias

“que surgiu aparentemente sem grandes pretensões, se estabeleceu no decorrer dos anos de 1970 e 80, atraindo jogadores de inúmeras correntes da capoeira para as rodas que aconteciam nos fins de semana no município de Caxias.  A Roda de Caxias, surge da ruptura de um grupo de jovens praticantes do sistema que aqui chamaremos de capoeira esportiva. A capoeira praticada em academias de ginástica é nomeada, por alguns antigos freqüentadores da roda na linguagem nativa, como sistema acadêmico, aqui identificado de capoeira esportiva” (BARTHOLO, 2007, p. 125).

Estar vinculado à prática da capoeira nas academias era estar ligado à capoeira estabelecida como produto no mercado dos esportes. E, o discurso de rompimento é elevado pelos pioneiros da Roda de Caxias. Contida como um espaço alternativo, esses jovens e sua roda de rua estavam à margem do sistema que vigorava. Posteriormente, estes jogadores imbuídos na criação da Roda viriam a ser expoentes da capoeira no Brasil e, conseqüentemente, em outros países (BARTHOLO, 2007, p. 127).

Nesta temporalidade, os primeiros capoeiristas se instalavam pela cidade. Duque de Caxias se tornou Área de Segurança Nacional e, em 1971, seus prefeitos eram interventores militares. A liberdade na cidade seguia ainda mais cerceada. Assim como outras manifestações populares, a capoeira sofria um rígido controle. Esta era uma política posta em prática em âmbito nacional (MARQUES, 2001, p.82).

Mesmo que rapidamente, quando se lança um olhar pelos jornais da década de 1970 em diante, percebe-se um quadro negativo posto por alguns analistas e estudiosos da cultura popular da época. Traçavam um destino sombrio para a capoeira, em muito influenciados pelos danos socioeconômicos e culturais provocados pelo turismo – folclorização e esportização (Brasil, 2014, p. 113).

Em consideração ao espaço a ser analisado nesta escrita, a Baixada Fluminense, território do estado do Rio de Janeiro, se caracteriza pelos altos índices de afrodescendentes na formação de sua população em geral.

“A presença africana na região marca as transformações da sociedade brasileira ao longo do tempo. Ignorar essas sobrevivências é desprover a historiografia e as demais produções e reflexões sociais de suas origens, que podem favorecer a explicação de diferentes questões que persistem ao longo do tempo. As identificações dessas características implicam forte mecanismo de preservar a cultura, podendo oferecer importante contribuição não apenas para a história da região, mas para o diálogo com outros campos do conhecimento, como a história nacional, a história atlântica e a história da África” (LAURENTINO, 2014, p. 63).

A ideia posta aqui não é instruir ás pessoas sobre o que é patrimônio, afinal, toda comunidade sabe dos valores culturais que as permeiam. Criar situações de aprendizagem pela via da educação patrimonial, é que se faz preciso. Neste sentido, orienta-se nossa proposta de uma pesquisa voltada para a preservação do patrimônio e da cultura negra caxiense, e também proporcionar aos colegas professores da educação básica, instrumento de valorização da identidade do alunado em suas práticas cotidianas.

Com quinze anos de promulgação da Lei 10.639, vemos um ambiente favorável de produção acadêmica; políticas de valorização cultural; e o desenvolvimento de práticas pedagógicas. Mas ainda há um longo caminho a ser seguido em prol de uma educação que respeite efetivamente as diferenças e oportunize a equidade.

Atentando a função social da escola e suas relações com o território no qual estão inscritas, identificamos que o universo educacional brasileiro precisa ampliar suas ações no que confere a implementação da Lei 10.639. Caxias, na Baixada Fluminense, mesmo com altos índices de afrodescendentes na formação de sua população em geral não foge á regra.

“Mesmo após estes avanços o atual Departamento de Patrimônio Histórico e Cultura da Secretaria Municipal de Cultura desconhece estas iniciativas, não se coaduna as discussões nacionais, e volta a tratar as manifestações da cultura popular, particularmente a capoeira, como folclore. A Secretaria Municipal de Educação encontra dificuldades em implementar a Lei 10.639 e reconhecer que o segmento cultural, representado pela Liga Municipal de Capoeira, seja o mais organizado, o mais próximo das práticas pedagógicas que indica que os espaços educativos devem possuir atividades culturais e que a capoeira possui uma tradição de educação não-formal” (MARQUES, 2001, p.89)

Nossa proposta fez-se por analisar a trajetória da Roda Livre de Capoeira de Caxias desde sua fundação em 13 de junho de 1973, até 2008, período do reconhecimento da capoeira como patrimônio cultural brasileiro. A documentação que informa o estudo e o conhecimento da História Regional de Caxias inclui documentos manuscritos e impressos. Em suma, nossa pesquisa se norteou em se atentar as fontes jurídico-policiais, jornalísticas e testemunhos dos sujeitos históricos pioneiros da Roda de Caxias. Já há documentado uma significativa disposição de entrevistas dos Mestres que se iniciaram nas rodas de Duque de Caxias.

“O município de Duque de Caxias, localizado no Estado do Rio de Janeiro, Brasil, apesar de não ser identificado “no mapa cultural” da incipiente historiografia da capoeira como um local que auxiliou a formar tradição dessa prática corporal, teve suas ruas e praças como palco do nascimento e manutenção de uma roda de capoeira de rua que se mantém há mais de trinta anos” (BARTHOLO, 2007,p. 127).

Desenvolvemos esta escrita através das análise bibliográficas sobre a temática. Avaliando quais são os referenciais teóricos já existentes e quais as aproximações sobre os questionamentos propostos pelo tema, tentado elucidá-los. Os questionamentos advindos das hipóteses levantadas na introdução seguiram a revisão da literatura relacionando a Capoeira; Educação Patrimonial; Didática da História; História Regional; Lei 10.639 e outros componentes de ligação entre a Educação para as Relações Étnico-Raciais em perspectiva patrimonial.

Referências
Igor Fernandes de Alencar é mestrando do PPGH/UFG.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. Brasiliense, São Paulo, 2000. 38ª Ed.

BRASIL. Ministério da Cultura. Roda de capoeira e ofício dos mestres de capoeira / Instituto do Patrimônio histórico e artístico nacional. – Brasília, DF : Iphan, 2014.

LAURENTINO, Eliame. Cultura Afro-Brasileira na Baixada Fluminense: Pesquisa e Ensino. In.: Revista Periferia. (62-74) v.6 n.1 jan-jun 2014.

MARQUES, Alexandre dos Santos, et al. A trajetória da Capoeira em Duque de Caxias. In.: Revista Pilares da História, ano 10 – edição especial (79-90) – agosto de 2011. 

Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. – Brasília: MEC/SECAD, 2006.

BARTHOLO, Tiago L. et al. Uma roda de rua: notas etnográficas da roda de capoeira de Caxias. In.:Revista Portuguesa de Ciências do Desporto. Vol. 7, Nº 1, Janeiro·Abril 2007.

4 comentários:

  1. José Humberto Rodrigues12 de abril de 2018 às 07:48

    Muito interessante seu texto, vou debater ele em sala de aula!!

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    1. Oi José,boa noite.
      Bom que tenha lhe despertado interesse, faça bom aproveito. Igor Fernandes de Alencar

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  2. Primeiramente parabéns pelo trabalho, um tema bastante importante de ser abordado para que se possa mostrar o valor que este possui na história de um determinado povo. Em muitos lugares a trajetória geral da Capoeira não é muito ou quase nada destacada,até mesmo nas escolas ela na possui muito espaço. Poderia me indicar quais,seriam as práticas didáticas, na sua visão que deveriam ser aplicadas para abordar esse tema dentro de sala de aula. Att: Franciele Marcos Velho.

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    1. Olá Franciele, boa noite. A capoeira inserida enquanto uma expressão cultural negra, e salvaguarda na Lista de Patrimônios Culturas pela UNESCO, nos dispõe de abrangentes interações didáticas, indo desde a plasticidade de seus movimento e o trato com o corpo (bastante usual pelo professores de educação física), até a compreensão de herança cultural africana e afro-brasileira. Caso seja oportuno pra você, posso compartilhar alguns materiais e referencias que lhe sirvam de um “ponta pé” para futuras práticas fazendo uso desta temática. Basta dizer um “olá” me enviando um email (igor4p@gmail.com) e lhe encaminho. Igor Fernandes de Alencar

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