Vânia Cristina da Silva e Cláudia Cristina do Lago Borges

DEZ ANOS DA LEI 11.645: ENTRE MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS


O dia 10 de março de 2018 é a data que marca os 10 anos da Lei nº 11.645, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, já modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, a fim de incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. (BRASIL, 2008). Assim, o presente texto tem como objetivo discutir as alterações propostas pela Lei nº 11.645, que agora completa uma década, bem como compreender os impactos da mesma no ensino de História e quais desafios ainda precisam ser enfrentados para sua plena efetivação no contexto educacional.

Durante séculos, os povos indígenas, sua cultura e identidade foram negligenciados, prevalecendo, sim, a negação dos direitos à sua diversidade, e até mesmo às suas etnias como construtoras da história da sociedade brasileira. A visão europeia sempre prevaleceu e a história contada/ensinada nas escolas abordando o processo de colonização sempre foi a de um Brasil “descoberto” por “valentes portugueses” que ludibriavam com facilidade os povos que aqui viviam, sendo esquecido todo o processo de resistência empreendido por essas populações.

A desconstrução desta imagem foi resultado de um longo caminhar de lutas, numa busca constante pelo protagonismo dessas etnias. Um dos marcos desta conquista foi justamente a promulgação da Lei nº 11.645, que menciona o seguinte:

“Art. 1o  O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 26-A.  Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o  O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o  Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras” (BRASIL, 2008).

A tentativa da referida lei é amenizar o preconceito que ainda se faz presente em nossa sociedade e, desta forma, desconstruir as muitas ideias esteriotipadas que ainda prevalecem no contexto social, pois:

"Os indígenas, em muitas situações do nosso cotidiano, são o “outro” da sociedade nacional e a disciplina escolar história é o espaço privilegiado para o conhecimento e a compreensão do outro, levando em conta as singularidades desse mesmo “outro” (não é isso que nos ensinam na Universidade?)". (OLIVEIRA, 2010, p. 160).

Para confirmar a afirmação de Oliveira (2010), basta que se lance o seguinte questionamento: onde estão os indígenas do nosso país? Como estes vivem atualmente? São muitas as dúvidas, assim como as respostas negativas às perguntas mencionadas que prevalecem entre a maioria da população, e isso nada mais é que o reflexo das muitas generalizações sobre esses povos, que

“[...] também são chamados de “tribos” a partir da perspectiva etnocêntrica e evolucionista de uma suposta hierarquia de raças, onde os índios ocupariam obviamente o último degrau; ou ainda imortalizados pela literatura romântica produzida no Século XIX, como nos livros de José de Alencar, onde são apresentados índios belos e ingênuos, ou valentes guerreiros e ameaçadores canibais, ou seja, bárbaros, bons selvagens ou heróis” (SILVA, 2012, p.41).

Outro exemplo comum que podemos mencionar se refere às comemorações ao Dia do Índio, em 19 de abril. Notamos, durante anos e anos, que nas escolas, esta data não passava de um dia para que as crianças tivessem seu rostos pintados, usassem adereços tais como tangas, cocares de penas e voltassem para suas casas com a ideia do índio como um ser preso ao período colonial e, sem nenhuma contextualização, quando o ideal seria que, junto aos estudantes, ocorressem discussões capazes de demonstrar a cultura desses povos; suas bandeiras de luta no passado, mas também nos dias atuais; onde e como vivem hoje; dessa forma, cairia por terra ideias equivocadas e comumente utilizadas de que: índio não pode usar celular, não pode ter acesso às tecnologias, deve viver afastado de tudo que não faz parte de sua cultura ancestral, entre tantas outras ideias que precisam e devem ser desconstruídas.

O importante é que, a passos lentos, mas esses tipos de generalizações vêm mudando e dando espaço a novos olhares sobre essas populações, inclusive porque, nos últimos anos, vem crescendo significativamente o número de indígenas em espaços antes jamais ocupados por eles, tomemos como maior exemplo as universidades, já que hoje é crescente a presença de pessoas pertencentes a essas comunidades nos meios acadêmicos, não se limitando apenas à conclusão de uma graduação, mas indo além, se tornando mestres, doutores e pesquisadores respeitados. Gersem Baniwa, por exemplo, mestre e doutor pela Universidade de Brasília, é autor do livro O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, no qual ressalta que:

“[...] quando falamos de diversidade cultural indígena, estamos falando de diversidade de civilizações autônomas e de culturas; de sistemas políticos, jurídicos, econômicos, enfim, de organizações sociais, econômicas e politicas construídas ao longo de milhares de anos, do mesmo modo que outras civilizações dos demais continentes europeu, asiático, africano e a Oceania. Não se trata, portanto, de civilizações ou culturas superiores ou inferiores, mas de civilizações e culturas equivalentes, mas diferentes”. (BANIWA, 2006, p. 49). 

É acerca dessa diversidade que precisamos falar nas aulas de história, é sobre as muitas diferenças socioculturais que devemos pautar o ensino de história indígena, pois, somente a partir de uma visão mais ampla será possível alcançar o reconhecimento dessa pluralidade e o reconhecimento dos direitos desses povos. Por esse motivo é que consideramos a promulgação da Lei nº 11.645 como um avanço nesse aspecto, pois esta, se colocada em prática realmente, pode possibilitar a superação de lacunas que persistem na formação escolar dos estudantes, esses mesmos que, futuramente, poderão (ou não) permanecer mantendo visões esteriotipadas acerca das populações indígenas. Isso depende muito da formação que irão receber.

Passados dez anos da promulgação da referida lei, embora devamos reconhecer certos avanços, ainda são muitos os desafios a serem enfrentados. A esse respeito, nos alerta Silva (2012, p.44):   

“É de fundamental importância, por exemplo, capacitar os quadros técnicos de instâncias governamentais (federais, estaduais e municipais) para o combate aos racismos institucionais. Mas, um grande ou o maior dos desafios é a capacitação de professores tanto os que estão atuando, a chamada formação continuada, quanto daqueles ainda em formação nas licenciaturas em universidades públicas e privadas, nos diversos cursos de magistério. O que significa dizer que no âmbito dos currículos dos cursos de licenciaturas e formação de professores, deve ocorrer a inclusão de cadeiras obrigatórias ministradas por especialistas que tratem especificamente da temática indígena, principalmente nos cursos das áreas das Ciências Humanas e Sociais”. 

As colocações de Silva (2012), embora feitas há seis anos, ainda são muito atuais, pois refletem uma realidade que ainda permanece, se considerarmos as dificuldades enfrentadas ainda pelos cursos de formação no trabalho com os estudantes do curso de história acerca da temática do ensino de história indígena. Muito embora, seja essencial informarmos que avanços significativos devem ser considerados, já que muitos professores universitários têm, sim, realizado trabalhos importantes nesse sentido, mas pensamos ser necessário uma ampliação dessa discussão. Outro aspecto que merece ser considerado como avanço são os materiais didáticos, já que, nas últimas coleções aprovadas pelo PNLD, podemos perceber muitos autores que se empenham na elaboração de livros que contemplam a temática indígena, mas não como antes, quando traziam esses povos como bons ou mal selvagens presos ao processo colonizador, mas, agora, alguns materiais traçam toda a história das comunidades indígenas, mapas atuais de onde vivem, como vivem e toda sua luta e resistência dentro de toda a História do Brasil.

Diante disso, nossa perspectiva é que, entre mudanças e permanências, ao completarmos dez anos de lei, temos seguido por um caminho promissor, mas sempre pensamos que o que está posto ainda pode avançar, melhorar, mas isso é uma questão de tempo, sempre há quem se preocupe e enxergue com olhar diferenciado as questões relacionadas à história dos povos indígenas. Que assim possamos seguir adiante, na busca por um Brasil que respeite cada vez mais a diversidade do seu povo.

Referências
Vânia Cristina da Silva é Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás.

Cláudia Cristina do Lago Borges é Professora Associada no Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba.

BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/Secad/Museu Nacional/UFRJ, 2006.

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008.  2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2008/lei/l11645.ht> Acesso em: 01 mar. 2018.

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de (coordenadora).  História: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o Ensino; v. 21). (Capitulo 7: A experiência indígena no ensino de História – Itamar Freitas).

SILVA, Edson. Povos indígenas: história, culturas  e o ensino a partir da lei 11.645. In: Historien – Revista de História. Petrolina, jun./nov 2012. Disponível em: <file:///D:/Indígena/Silva,%20Edson.%20“POVOS%20INDÍGENAS_%20HISTÓRIA,%20CULTURAS%20E%20O%20ENSINO%20A%20PARTIR%20DA%20LEI%2011.645”.pdf> Acesso em: 03 mar. 2018.




3 comentários:


  1. Olá Vânia e Cláudia, parabéns pelo trabalho.
    É interessante a abordagens que vocês fizeram sobre os dez anos da lei 11.645/2008, sendo que a mesma alterou a LDB de 1996, que é obrigatório incluir no currículo educacional o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Ao longo dos tempos anteriores os povos indígenas tiveram negação de seus direitos à diversidades. Sendo que, nos livros didáticos vem especificado que o país brasileiro foi “descoberto”, mas sabemos que não aconteceu dessa forma. Qual a metodologia que vocês utilizariam para explicar para os alunos, esse processo que o pais brasileiro não foi “descoberto”?

    Suerley Mendes Parintins

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Olá, Suerley.
    Interessante seu questionamento, pois ensinar História envolve lidar com uma série de questões, entre elas, a desconstrução de certas visões tradicionais que ainda são muito comuns, como é o caso da ideia de um Brasil descoberto pelos portugueses. Durante dez anos, lecionei na Educação Básica, hoje, estou afastada em função da conclusão do doutorado. Então, vou falar com você, a partir da minha própria experiência.
    No período em que estive em sala, sempre que iniciava minhas aulas, procurava discutir com os alunos a visão deles acerca do assunto a ser estudado naquele dia. Era muito interessante esse contato inicial, pois havia ampla participação e todos, de alguma forma, apresentavam suas visões sobre o tema da aula. Era a partir desse debate que eu ia desconstruindo determinados conceitos e trabalhando com eles as diversas formas como a história pode ser contada, cabendo a nós interpretá-la, pois estudar "história exige imaginação e muito esforço, muito rigor", como diria Laura de Mello e Souza. Claro que devo mencionar aqui que numa aula de história nunca estamos sozinhos, temos a companhia de materiais de apoio, do livro didático. E aí também surge uma rica possibilidade, pois antes mesmo de mergulhar no que esses escritos trazem, é interessante trabalhar com os estudantes que materiais serão utilizados naquela aula e que cada um deles (sejam textos de apoio, sejam livros didáticos, documentos históricos, entre tantos outros) foram produzidos por variados sujeitos, em determinado período e que nenhum está livre de certas (ou muitas) intencionalidades. É bastante interessante analisar com os alunos como uma mesma temática é tratada de formas diferenciadas em materiais diversos. Eles gostam da proposta, além de facilitar a compreensão acerca do assunto e despertar neles o senso crítico da análise a partir das entrelinhas, daquilo que está implícito e não apenas do que está explícito.
    Bom, espero ter contribuído ao tentar responder sua pergunta.
    Abraço,
    Vânia.

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