Julia M. Kalva e Simone Aparecida Dupla

É DE PEQUENINO QUE SE APRENDE! OLHARES SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E AFRO-BRASILEIRA NO FUNDAMENTAL I DA CIDADE DE PONTA GROSSA-PR


A cidade de Ponta Grossa, no Paraná, recebeu durante seu desenvolvimento diversas culturas, nela vive uma diversidade étnica proveniente de vários lugares do globo, mas nenhuma cultura tem sido tão relegada ao esquecimento quanto aquelas vindas do continente africano. E essa constatação vale também para todas as modalidades de ensino, visto que os trabalhos que se referem à temática da história e cultura afro-brasileira, apesar de ser parte obrigatória no currículo escolar, ainda são terreno de poucos profissionais, que engajados realizam projetos e promovem o conhecimento acerca dessas culturas.

Na cidade em questão, o fundamental I é subdividido em 1º ciclo (1º, 2º e 3º anos) e 2º ciclo (4º e 5º anos), sendo que para o primeiro ciclo as diretrizes municipais preveem a abordagem de história do município e dos aspectos culturais que norteiam a sociedade, sendo esse contexto propício para a realização do trabalho com a cultura afro-brasileira. Desta forma, o presente texto tem por objetivo apresentar alguns olhares acerca da temática da cultura afro-brasileira no primeiro ciclo. Visões essas que perpassam tanto o ambiente acadêmico e da profissional de História, quanto aquele da Literatura, quanto aquelas que se encontram do outro lado da ponte e que buscamos construir, ou seja, os alunos e suas famílias.

Entendemos como Sandra Pesavento, que há uma relação entre história e literatura, ambas são narrativas “que tem o real como referente para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão ou ainda para ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem a vida e que a explicam” (PESAVENTO, 2006, p.14), portanto essas narrativas vinculam-se ao imaginário e seu sistema de representações coletivas e individuais. A literatura pode ser fonte para história, mas também pode ser instrumento para construir outras narrativas, menos globalizantes, mais plurais.

Os relatos tem uma recepção por parte do público, que de forma alguma é hegemônica. Como destacou Michel de Certeau (2009) o que o produtor fabrica é diferente do que o consumidor recebe, há uma tradução por parte do consumidor. Desta forma, este texto não trará apenas de uma descrição acerca do que foi executado, mas também constitui-se como uma forma de medir, ainda que de forma inicial, o alcance de nossas práticas dentro do ensino de história, bem como entender a visão do Outro a respeito do que lhes foi apresentado.

Não se trata apenas de salientar a importância dos trabalhos nessa temática, mas de perceber se algum avanço significativo está sendo alcançado quando estes são realizados. Tornando-se, assim, válido também trazer a voz do “consumidor”, pois é ele quem melhor pode apontar o quão importante o trabalho com a pluralidade cultural, principalmente com a cultura afro-brasileira, tem sido para o desenvolvimento dos alunos envolvidos no projeto.

Além disso, é importante ressaltar que a lei 11.645/08, que altera a lei 10.639/03 inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática da Cultura Afro-Brasileira e Indígena, tanto para o ensino público quanto para o privado. Sendo que o conteúdo programático de que se refere o artigo 26 § 1º diz que este:

“[...] incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil” (BRASIL, 2008). 

Portanto, tais conteúdos deverão ser ministrados “no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileira” (BRASIL, 2008).  Posto isso, vê-se a necessidade da busca por estratégias de ensino dessa temática para a faixa etária dos educandos, uma vez que os trabalhos com a literatura e arte se apresentam como caminhos viáveis para tal objetivo, além, é claro, de promover a interdisciplinaridade.

Partindo, então, da possibilidade de se utilizar diversas disciplinas para abordar o tema, e de que o ensino fundamental I possui uma vertente voltada à história da cidade e que essa história também é permeada pela cultura afro-brasileira, fez-se um trabalho voltado a esse tema com as crianças do fundamental I, do primeiro ciclo.

 A preocupação em relação à temática da cultura afro-brasileira parte do cotidiano de sala de aula, das visões arraigadas de alunos e professores, as quais mostram seus pensamentos a cerca do “ser” afro ou não. Este fato pode ser notado em atitudes de sala de aula, como, por exemplo, quando faço produção imagética com os alunos. Durante suas produções é frequente ouvir a frase: “Professora, me empresta o lápis cor de pele?”  e quando respondo “ Qual cor de pele? Marrom, negra, amarela? E que tom? Claro, escuro, médio?”, noto certo estranhamento por parte de alguns alunos, pois para eles há apenas um lápis cor de pele: o salmão. Isso implica em um pensamento construído que os leva a negar a existência da diversidade de tons de pele, e mesmo em uma homogeneização errônea da humanidade. 

Como dito anteriormente, a construção do paradigma do lápis de cor “cor de pele” vem de muito tempo e acaba sendo trazido, muitas vezes, pelos próprios professores e pais quando da entrada dos alunos na escola, fazendo assim, com que esse pensamento seja perpetuado e tratado como algo “normal” ou padrão. Isso, mesmo que inconscientemente, faz com que se pense em apenas uma tonalidade de pele aceitável, no caso o salmão, que representa o “branco”.  Dessa forma, o padrão caucasiano acaba por ser definido como o mais bonito, ou mesmo como o único possível dentre tantos os tons presentes na “caixinha” de lápis de cor dos educandos.

Pode-se pensar nisso como algo irrelevante, ou apenas como uma forma de facilitar a vida dos alunos, pois esses não precisam pensar em que cor usar para representar seus bonecos ou desenhos, haja vista que já possuem um modelo pronto.  Porém, cabe ressaltar que a representação é uma das formas das identidades se construírem e se mostrarem para o outro; sendo assim, deixar de representar a pluralidade de tons de pele faz com que os alunos também deixem de se representar, deixando, assim, suas identidades de lado, buscando encaixarem-se no padrão pré definido pelo paradigma da cor salmão.

A identidade pode ser definida em relação ao que um grupo ou indivíduo é e pela sua diferença em relação ao outro. Conflitos, negações e escolhas permeiam a construção das identidades tanto individuais quanto coletivas que se encontram embasadas na alteridade e na afirmação. Porém, é importante salientar que essas identidades são fortemente generalizantes, não levando em consideração diferenças de gênero, classe social ou etnias (DUPLA, 2014, p.52), assim, ao padronizar seres humanos com a cor branca, legitima-se esta como única aceitável em relação às outras. Essa situação em sala de aula contribui para o apagamento daqueles que não se enquadram no estereótipo do branqueamento, fazendo com que muitos neguem a própria cor quando se representam por uma cor que não a sua.

Como lembra Nilma Lino Gomes, a escola é um dos espaços “que interferem na construção da identidade negra. O olhar lançado sobre o negro e sua cultura, na escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las” (GOMES, 2003, p. 171-2). Para desconstruir tal paradigma da cor de pele buscou-se estratégias para se abordar a cultura africana e afro-brasileira, assim, optou-se por contos que poderiam ser abordados de forma lúdica e educativa para trazer a diversidade e a pluralidade cultural para o âmbito escolar.

A importância de se trabalhar estereótipos raciais em sala de aula oportuniza a desmistificação de traços culturais dicotômicos que enquanto categorias discursivas identitárias alimentam embates como: bom X mal, belo X feio, certo X errado, negro X branco, e propagam assim uma ideia de identidade baseada na negação do outro e/ou na sua depreciação (DUPLA, 2014, p. 53).

Entre os contos trabalhados na disciplina de Ciências Sociais, nome que engloba história e geografia, encontra-se “Os filhos do fogo”, de Ingrid Biesemeyer Bellinghausen,  com ele apresento alguns aspectos do continente africano para os alunos, lembro que Nyame, a divindade que cria a terra é africano, logo negro. O projeto incluiu a produção de livros pelas crianças, além de outras produções que sempre estão relacionadas a um conhecimento. Além desse conto, as tranças de Bitou, Anansi e o baú de histórias, entre outros, ajudam a construir outro olhar sobre a cultura afro-brasileira, visto que esta é herança da cultura africana em suas diversas matizes, logo elementos contribuintes na formação identitária.

Do outro lado da ponte: a voz do outro ou o que se aprendeu
A partir do trabalho realizado com os alunos ensino fundamental I do primeiro ciclo, recebemos alguns feedbacks por parte dos pais e alunos que parecem bastantes interessantes. O primeiro quesito se dá quanto à formação de alunos críticos, já que no momento que se apresenta uma história fora do padrão “conto de fadas” os alunos se põem a questionar e (re)avaliar essa outra forma de ver o mundo fantástico, mundo esse permeado por figuras que não são frequentes no cotidiano, tanto escolar quanto de mundo de muitos.

Não obstante, essas novas histórias fazem também com que se repense no conceito do que é ser bom, belo, negro, branco, errado, certo, pois uma visão não muito abordada é trazida à baila e faz com que o padrão seja questionado, dando vasão para que as mais diversas pluralidades possam aparecer e dar opção de escolha para alunos também plurais e que muitas vezes não se reconheciam nas histórias contadas.

Vale lembrar que trabalhar com a literatura é trabalhar com o imaginário, com a capacidade de criar imagens e sentidos a partir do ouvido e do lido. Sandra Pesavento destacou a importância do imaginário, para a historiadora, ele era o elemento organizador do mundo, que lhe dava coerência, legitimidade e identidade. Um “sistema de identificação, classificação e valorização do real pautando condutas e inspirando ações” (PESAVENTO, 2006, p.12), mais que isso, o imaginário é o “sistema produtor de ideias e imagens, que suporta, na sua feitura, as duas formas de apreensão do mundo: a racional e a conceitual que formam o conhecimento científico, e a das sensibilidades e emoções, que correspondem ao conhecimento sensível” (PESAVENTO, 2006, p.12). Daí também sua relação com o conceito de representação, visto que imaginário se constitui como um sistema de representações sobre o mundo que tem o real como referente (PESAVENTO, 2006, p.12).

Outro aspecto muito relevante que aparece dentro dos contos e a questão da cor. Textos outros nos quais apenas víamos personagens brancos sempre como protagonistas, agora são deixados de lado e o afrodescendente passa a ser o personagem principal. Como já comentado anteriormente, a representação é de extrema importância para a construção identitária, e quando o personagem negro aparece como principal, consequentemente o aluno irá se identificar e principalmente querer se identificar com o negro e assim com toda a cultura que o envolve.

Além disso, o tão comentado lápis de cor “cor de pele” também passa a ser questionado, posto que agora os personagens não se enquadram no “salmão” e os alunos quando na construção de seus livros e pinturas já não podem mais recorrer a ele, e precisam analisar a cor ideal a se usar, e descobrem no meio de seu trabalho que não há cor ideal, mas sim um leque de cores que podem representar o ser humano. Nesse momento, acredito que a descontrução e (re)construção de paradigmas e padrões são mais notáveis, uma vez que os alunos sentem o abstrato vir ao concreto quando da construção de seus próprios trabalhos.

Outro ponto a ser ressaltado é a valorização da cultura africana. Os alunos, mesmo aqueles não “negros” ou que não se consideram negros passam a admiram a cultura afrodescendente, sentindo a vontade de também pertencer aquele mundo; entendendo, mesmo que inconscientemente, que o lugar ao qual pertence é formado pela diversidade e que a pluralidade é rica. Nesse momento a homogeneidade branca passa a ser questionada e a valorização do negro e da pluralidade ganha força; essa tomada de consciência nos primeiros anos colabora para uma formação mais justa e igualitária, formando cidadãos mais críticos no futuro. E como lembra Almeida & Dupla “saber como lidar com essa pluralidade é papel do professor, que assume a função de mediador de conflitos, daquele que traz questões a serem pensadas, de desmistificador de pré-conceitos herdados de nossa cultura colonialista” (ALMEIDA; DUPLA, 2017, p.124).

Ao relacionar história e literatura, elas passam a colaborar na formação de cidadãos mais críticos, menos propensos a intolerância com aquilo que foge aos padrões pré-estabelecidos. De Abayomis a guerreiros zulus, os olhares dos alunos sobre a temática vão mudando ao longo do ano. Das tranças de Bintou aos turbantes e colares, da lenda do Baobá a Anansi e o baú de histórias, os educandos vão adentrando a um universo de cores, tradições e memórias que já não são mais a imagem da escravidão criada pela narrativa dominante.

Considerações finais
O trabalho que se apresenta ao professor do fundamental I, nem de longe pode ser qualificado como fácil, sua função polivalente exige constante formação para as áreas da qual não são especialistas, entre elas: História, Geografia, Arte, Ciências e a mais nova área a ser agregado no próximo ano, o Ensino Religioso, sobre o qual os auspícios não são favoráveis, mas cujas criticas não cabem nesse texto.

Sobre o trabalho realizado, percebe-se que ele deve ser continuo, critico e sempre pronto a mudanças e novas estratégias. Pensar o outro exige sair de si, e isso é um exercício cotidiano, onde leituras, planejamento e saber ouvir as vozes do outro lado da ponte são necessários e urgentes. Contudo, acredito que o trabalho surte efeito e é de extrema necessidade que se de não apenas continuidade, mas que também possa ecoar em mais cotidianos escolares, reverberando a grandeza da pluralidade e diversidade do povo brasileiro.


Referências: 
Julia Kalva é mestre em Linguagem, identidade e subjetividade, pela UEPG. Professora convidada do curso de Letras a distância da mesma instituição e produtora e corretora de materiais didáticos da editora SAE.
Simone Aparecida Dupla é doutoranda em História, pela UEM, professora do Fundamental I e Ensino Médio.

BELLINGHAUSEN, INGRID B. Histórias encantadas africanas. Belo Horizonte: RHJ editora, 2011.
BRASIL. Lei 11.645/08 de 10 de Março de 2008. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. as artes de fazer; 16ª Ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

DIOUF, S.A. As tranças de Bintou. Tradução Charles Cosac. Ilustração Shane W. Evans. São Paulo: Cosac Naif, 2016.

DUPLA, S. A. Lei 10.639/03, a representação do negro e o contexto escolar. Revista Tempo, Espaço, Linguagem. V. 5, n. 2, Mai. - Ago, 2014. pp. 50-58.

ALMEIDA, R.G.; DUPLA, S.A. Literatura infantil em cena: perspectivas para a formação do cidadão nos livros de Pedro Bandeira. Revista Espaço Acadêmico: n.190, março, 2017.

GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003.

PESAVENTO, S.J. História & Literatura: uma velha-nova história. In: COSTA, C.B; MACHADO, M.C.T.(org). História e Literatura: identidades e fronteiras. Uberlândia:EDUFU, 2006.

3 comentários:

  1. As autoras destacam que o trabalho pedagógico atento ao respeito à diversidade do povo brasileiro, deve ser “contínuo, crítico e [...] com novas estratégias”. O referente artigo, oferece algumas estratégias de ensino a partir da literatura infantil e com a pintura, no entanto, gostaria que as autoras, se possível, oferecessem outras sugestões metodológicas que ajudem na transposição pedagógica da Lei 10.639/2003 para o cotidiano da sala de aula dos pequeninos.

    Antonio José de Souza

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    1. Olá Toni, fico feliz por ter lido nosso texto. Então... nesse artigo nós procuramos abordar uma das práticas pedagógicas, que foi a relação com a literatura e a arte, além de colocarmos o olhar da recepção dos conteúdos,visto que a Júlia é mãe de uma das alunas. Ao longo do ano foram desenvolvidas atividades que buscaram valorizar e abordar a diversidade cultural presente na nossa cidade. O ensino municipal ainda é, infelizmente, voltado às data comemorativas, o que acredito não ser adequado para uma sociedade pluricultural como a que vivemos, assim, sempre busco fugir das datas. As atividades desse relato, por exemplo, foram realizadas no início do ano, em novembro, quando se fala em dia da Consciência Negra, trabalhamos o mês todo com a cultura africana e afro-brasileira, o que culminou com uma mostra dessas culturas. No entanto, preciso ressaltar que não é tarefa fácil, nenhuma cultura é, além disso, é preciso adequar os conteúdos para cada ano do ciclo, pois a capacidade de percepção, cognição e leitura amadurecem, pese a isso, o tempo limitado para preparação das aulas, questões de indisciplina e outras financeiras (falamos em escolas públicas). Mas creio, que toda iniciativa é válida, e poder ver os alunos descobrirem novos conhecimentos, aprenderem sobre o outro, não tem preço. Então, minha sugestão é fugir das datas comemorativas, buscar adequar as atividades a cada faixa etária, dar o primeiro passo, porque pode até não sair tudo como queremos, mas com certeza sairá melhor do que o imaginado.
      Espero ter respondido.
      att
      Simone

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  2. Ana Claudia Barbosa de Oliveira12 de abril de 2018 às 19:26

    Olá, primeiramente parabeniza-las pelo artigo muito bom e também foi uma ótima sacada começar com os pequenos principalmente com a desmitificação do Lápis "cor de pele", outra boa ideia é de juntar historia e literatura e com isso desmistificar somente a historia eurocentrista que todas as crianças aprendem desda educação infantil e por isso gostaria de saber como vocês foram motivadas a fazer essa pesquisa e de que forma mais pontual fazem esse trabalho na escola ou são somente escritoras?
    desde ja agradeço !
    Ana Cláudia Barbosa de Oliveira

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