Olga Suely Teixeira

PRECISAMOS FALAR DOS NEGROS: ENSINANDO CIDADANIA NA AULA DE HISTÓRIA DOS ANOS INICIAIS

Este texto compartilha uma experiência metodológica cujo objetivo inicial foi trazer ao ambiente de sala de aula do Quinto Ano conteúdos não elencados no livro didático em uso; esse objetivo acabou se ampliando e gerando discussões pertinentes não apenas ao universo do negro escravizado no Brasil Colônia, mas também relativas aos problemas enfrentados Por eles nos dias atuais.

O trabalho se desenvolveu em uma escola de periferia na cidade de Natal/RN, no ano letivo de 2017 e faz-se necessário dizer que orientar a disciplina História em uma turma dos Anos Iniciais me trouxe várias problemáticas. Da linguagem utilizada para tornar os conteúdos inteligíveis a crianças entre nove e doze anos de idade ao planejamento de ações que mudassem a postura dessas crianças em relação ao estudo de História, tudo parecia um tanto quanto impossível no início. Porém, resolvidas as primeiras questões, um problema maior se apresentou: o livro didático adotado pela escola mencionava os negros apenas para dizer que, à época do Brasil Colônia, o trabalho da plantação e colheita da cana e a fabricação do açúcar era realizado por eles.

Havia uma ausência e um silêncio constrangedores sobre a presença negra naquela fase da história brasileira e por uma dessas coincidências da vida, a televisão exibia uma novela onde os negros escravizados estavam em toda parte e as crianças questionaram esse fato.

Entendendo que os conteúdos e as finalidades do ensino-aprendizagem de História vêm se transformando ao longo do tempo e observando que as tarefas atuais desse processo estão ancoradas em novas demandas sociais, encontrei ali uma oportunidade de exercitar a minha própria e de oportunizar aos meus alunos o exercício de sua cidadania, refletindo, criticando e se posicionando diante de um tema caro e relevante ao contexto de uma sociedade que se quer justa e igualitária.

Nesse sentido, planejei as aulas mediante dois conteúdos: O trabalho do negro africano escravizado no Brasil Colonial e História das mulheres negras no Brasil Colônia, com os objetivos de – a priori – dar a conhecer aos alunos e alunas informações sobre o universo negro ainda no princípio da história nacional – e de favorecer o pensamento crítico em relação às questões de preconceito de raça e gênero. Como recurso para o trabalho utilizei o Kit Didático “Quitandeiras”, produzido pelo LEMAD/USP e disponível para download na Internet.

Fundamentando a Experiência
Cidadania não era uma palavra do universo escolar no Brasil até – pelo menos – a segunda metade do século XIX (para aprofundamento ver STAMATTO, Maria Inês Sucupira. Entre a escrita e a oralidade: o voto e a escola – Brasil: 1875-1904. IV Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”. 14 a 19 de Dezembro de 1997. UNICAMP, Campinas, SP), quando a necessidade de ser alfabetizado para votar - ato que garantia a cidadania segundo o entendimento da época – fez com que a escola passasse a ser vista como o local onde se aprende a ser cidadão.

Logo a função de ensinar a ser cidadão seria delegada à disciplina escolar História e, após longo tempo de transformação, hoje implica em “[...] formar crianças, jovens, adultos e idosos por meio de uma história o mais diversa possível com acento na [...] atuação dos diferentes sujeitos presentes na sala de aula” (Gil; Pereira; Pacievitch; Seffner, 2017, p. 11).

Dessa forma e levando em conta a afirmação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998, p. 25), quando diz que “a educação para a cidadania requer [...] que questões sociais sejam apresentadas para a aprendizagem e a reflexão dos alunos”, ao elaborar a intervenção com o tema aqui apresentado a intenção foi abrir um espaço para a compreensão da atitude do “outro” (negros e brancos / homens e mulheres), favorecendo, desde uma idade ainda mínima, atitudes de respeito e solidariedade e capacidade de conviver com a diferença.

Em relação aos recursos, a escolha do kit LEMAD/USP se deu pelo fato de que, em determinado momento do trabalho, o material estimularia também a leitura e interpretação de documentos escritos e imagéticos, assim como a prática da escrita pelos alunos e alunas.

Descrição da Metodologia
Como o livro didático fosse muito vago, o desenvolvimento da experiência abrangeu vários momentos.

O primeiro momento deu-se a partir de aulas expositivas e registros no caderno sobre o contexto da vinda dos africanos e seu estabelecimento como mão de obra escravizada não apenas nos engenhos de cana-de-açúcar, mas nas minas e nos ambientes citadinos. Estudou-se, também, a diferenciação das funções de trabalho masculino e feminino. Enfim, discutimos questões relativas à resistência escrava e à alforria.

Em um segundo momento, a roda de conversas permitiu a abordagem da condição feminina no Brasil daqueles tempos, com recorte específico da condição da mulher negra. O trabalho com o Kit didático veio a seguir; constituído de 15 documentos ao todo, o material permite ler e interpretar fontes escritas e imagéticas, dando oportunidade para que as crianças observassem, refletissem, comparassem os documentos que tinham em mãos e produzissem textos com os resultados de suas análises ao final dessa etapa.

Essas análises foram apresentadas oralmente para os colegas e a professora, momento no qual deveriam se posicionar quanto à problemáticas tais como: importância da participação da mulher negra na sociedade do Brasil Colônia; motivos para a existência (na opinião deles/delas) do preconceito tanto de raça como de gênero; como esses preconceitos tem afetado a vida da população negra no Brasil atual; o que fazer para solucionar as variadas situações de desrespeito vivenciadas/presenciadas no dia-a-dia.

Análise dos Resultados
Considero que os objetivos foram atingidos, após avaliar o material escrito produzido pelos alunos, bem como os pontos de vista manifestados durante a realização do exercício de oralidade sobre o tema estudado. Uma das alunas considerou que “não era de se admirar que os livros não falassem daquelas quitandeiras, se as mulheres brancas já eram desvalorizadas, imagine as negras...”

Alguns alunos e alunas sentiram-se à vontade para narrar episódios testemunhados e/ou vivenciados por eles/elas.

Nesse sentido, a experiência demonstra a necessidade de se inserir “a criança no mundo do saber histórico e social”, conforme nos diz Silva (2012, p. 04); isso evita que seja oferecido um conhecimento pronto e acabado em uma fase da vida na qual a curiosidade aflora sobremaneira.

Além disso, ficou claro que os alunos/alunas dos Anos Iniciais conseguem construir problemáticas a partir dos conteúdos e dos dilemas cotidianos e entender novas formas de narrar o passado, enxergando o processo histórico como algo dinâmico, dependendo da forma pela qual são orientados/orientadas.

Ressalto, no entanto, que um trabalho dessa natureza exigirá do profissional os conhecimentos sobre algumas das características da faixa etária com a qual está atuando e, via de regra, também sobre como acolher as experiências discentes no seu planejamento. Infere-se que o resultado será a formação do cidadão nos moldes preconizados pelos objetivos do ensino de História dos dias contemporâneos: reflexivo, crítico e atuante na sociedade na qual se encontra inserido.

Referências
Olga Suely Teixeira é Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora de História na rede particular de ensino da cidade de Natal/RN.

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos Temas Transversais; ética / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. p. 25.

GIL, Carmem Zeli de Vargas; PEREIRA, Nilton Mullet; PACIEVITCH, Caroline; SEFFNER, Fernando. Ensinar, pesquisar, ensinar: a experiência dos Mestrados Profissionais. Revista PerCursos, Florianópolis, v. 18, n. 38, p. 08-32, set/dez. 2017.

SILVA, Elvis Roberto Lima da. Alfabetização Histórica é possível? Anais do XV Encontro Regional de História da ANPUH – RJ, 2012.

STAMATTO, Maria Inês Sucupira. Entre a escrita e a oralidade: o voto e a escola – Brasil: 1875-1904. IV Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”. 14 a 19 de Dezembro de 1997. UNICAMP, Campinas, SP.

8 comentários:

  1. Professora, gostaria que a senhora, se possível, narrasse outras dificuldades experimentadas no tocante ao ensino da história dos/as homens e mulheres negros/as no Brasil Colonial em séries inicias. E como a senhora percebe a formação inicial/continuada dos professores para o cumprimento da Lei 10.639/2003?

    Antonio José de Souza

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    1. Boa Noite Antônio, obrigada pela apreciação do texto e por participar no debate desse tema tão relevante para a educação atual. Em relação às dificuldades ao ensinar sobre a história e cultura africana e afro-brasileira nos anos iniciais, posso te dizer que a maior delas é a falta de material didático apropriado para essa faixa etária e devidamente sistematizado. Isso demanda longas horas de pesquisa e de produção do próprio material quando o professor realmente se interessa pelo trabalho. Outro fator dificultador é o preconceito das próprias famílias, transmitido aos alunos e às alunas desde a primeira infância - pelo menos é uma realidade na escola onde trabalho, onde as crianças sequer se reconhecem negras e/ou descendente dos mesmos. Falar dos negros no Brasil Colonial é um assunto que aparece em torno dos 4º/5º Anos, idade em que alunos e alunas se filiam basicamente ao modelo eurocentrista no que diz respeito à aparência e aspectos culturais, o que torna o terreno ainda mais espinhoso.
      Para o enfrentamento de todas essas questões, que dariam conta do cumprimento da Lei 10.639/2003, seria necessário uma mudança geral no que diz respeito tanto à formação inicial dos docentes como à formação continuada, pois se observarmos mais a fundo, o que há até hoje são paliativos inseridos às pressas nos currículos formadores, sem que haja tempo hábil durante os cursos para problematizar os aspectos essenciais da mediação docente frente à temática.
      Espero ter respondido com clareza e, se for necessário, poderemos continuar trocando ideias. Mais uma vez agradeço.
      Olga Suely Teixeira.

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  2. Professora, gostaria que a senhora ajudasse no sentido de sugestões para trabalhar essa problemática com os alunos da educação infantil. Grata.
    Aline da Silva Ferreira

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  3. Boa Noite Prezada Aline!Obrigada pela leitura e por oportunizar a ampliação do nosso leque de discussões. Veja, na função de Coordenadora Pedagógica, montei com as professoras da Educação Infantil projetos que se utilizaram dessas seguintes práticas: contação de histórias a partir dos escassos paradidáticos aos quais temos acesso (um deles é "Menina Bonita do Laço de Fita"), teatrinho de fantoches com bonecos e bonecas negras, exibição de vídeos infantis com personagens africanos e afro-brasileiros, desenho e pinturas relacionados a esse universo.
    A própria diversidade da sala de aula pode ser problematizada, discutindo com as crianças os variados tons de pele e combatendo atitudes preconceituosas que, muitas vezes, se manifestam nesse ambiente já em tenra idade.
    Bem, Aline, são apenas algumas sugestões de como podemos tratar das africanidades já na Educação Infantil; na própria Internet existem blogs super-confiáveis, nos quais podemos encontrar muitos trabalhos bacanas de professores dedicados a essa nova educação, com o objetivo de formar seres humanos melhores e livres de qualquer que seja o preconceito. Costumo consultá-los, então adapto as ideias à realidade dos meus alunos e alunas.
    Espero ter ajudado um pouquinho, tá? Sempre à disposição.
    Olga Suely Teixeira.

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  4. Professora Olga, parabenizo-te pela sua iniciativa de procurar ultrapassar o aprendizado superficial dos conteúdos conceituais em sala de aula em busca de uma educação para a cidadania, já nos primeiros anos do ensino fundamental. Tenho certeza que não é fácil.

    Considero o tratamento da Educação quanto à temática da diversidade étnica de primeira necessidade para fazermos a nossa parte quanto ao fim do racismo.

    Para mim, um grande desafio dos dias atuais é lidar com toda a informação preconceituosa que meus alunos e alunas veem e muitas vezes reproduzem sem contestar. Na sua experiência de professora de História, como lidar com toda essa informação que, para o bem ou para o mal, cerca os alunos?

    Desde já agradeço a resposta,

    Cícera Tamara Graciano Leal da Silva Fernandes

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    1. Olá Cícera Tamara, boa noite! Obrigada por participar dessa análise e trazer sua rica contribuição, uma vez que é um ponto de extrema relevância para o nosso trabalho de mediadores em História, a consciência da bagagem extra escolar que o alunado traz consigo para as nossas salas de aula. No meu cotidiano tenho lidado com situações complicadas quanto a essa enxurrada de informação preconceituosa e uma das soluções que tenho encontrado é parar tudo, entender o contexto no qual o aluno/a aluna adquiriu a informação e problematizá-la, chamando a sala para a pesquisa do tema e posterior discussão do mesmo com o objetivo de transformar o ponto de vista inicial. Em relação às temáticas africanas e afro-brasileiras isso se dá muito, nas minhas aulas, quando tratamos de religiosidades. É claro que o resultado nem sempre é totalmente positivo, mas acredito que temos, pelo menos, que tentar. Mais uma vez te agradeço a apreciação do trabalho, ficando à sua inteira disposição para aprofundarmos o diálogo.
      Olga Suely Teixeira.

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  5. Parabéns pelo texto, professora!

    Gostaria de saber se até chegar aos resultados finais e positivos, houveram alguns empecilhos ou pontos negativos no caminhar desse estudo?

    Grata,
    Beatriz da Silva Mello.

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  6. Iamília Brito de Oliveira13 de abril de 2018 às 17:08

    Boa noite professora Olga, primeiramente quero parabenizá_la pelo tema. Sabemos que o a maioria dos professores só usam o livro didático como recurso pedagógico, e que esses livros são muito fragmentados, não frisam sobre a importância do negro na História do Brasil. A senhora está de parabéns pela iniciativa de trazer recursos diferenciados para trabalhar essa temática. Depois dessa experiência, quais as mudanças que a senhora observou em seus alunos em relação ao preconceito? E quais as dificuldades que a senhora encontrou para trazer o ensino diferenciado para a sala de aula?

    Grata.
    Iamília Brito de Oliveira

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