RELEVÂNCIA DA LEI Nº 10.639/03 NO
CURRÍCULO ESCOLAR DA EJA
Pontuando os alicerces da Educação de
Jovens e Adultos (EJA) nos aspectos emancipatórios voltados para a classe
trabalhadora, o presente trabalho busca destacar a relevância desses preceitos
somados a Lei nº 10.639/03. Esse estudo destaca a importância da abordagem
valorativa das contribuições afro brasileira e africanas na disciplina de história
na modalidade de ensino da EJA.
Para nos situarmos é
preciso pontuar que a Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma categoria de
ensino destinada aos jovens e adultos que não tiveram acesso ou que por algum
motivo não puderam concluir o ensino na idade própria. O que descrevemos aqui
como “aspectos emancipatórios da EJA” é o entendimento que a Educação de Jovens
e Adultos tem em seu cerne práticas e reflexões que favorecem a consciência
crítica e a emancipação do educando (VENTURA, 2008). Dentro desse contexto
percebemos também que a EJA está associada diretamente a classe trabalhadora
(CIAVATTA; RUMMERT, 2010) não uma classe trabalhadora qualquer, mas uma que, em
sua maioria, é negra, e sofre pesadas consequências por viver em um país com
latentes cicatrizes históricas da escravidão, que permeiam a vida de todos os
trabalhadores negros do Brasil.
Nesse
sentido, seguindo os aspectos emancipatórios da Educação de Jovens e Adultos
que se relaciona com a valorização e respeito à cerca das origens do alunado o
presente trabalho se propõe a analisar sucintamente as contribuições da Lei
10639/03 na Educação de Jovens e Adultos.
Para
entendermos a importância de um projeto emancipador para os alunos negros e
trabalhadores da EJA, temos que antes de tudo entender a trajetória histórica da
diáspora africana no Brasil.
Desde os primórdios da
colonização do Brasil, a mão de obra negra escravizada foi engrenagem motriz
para a saúde econômica do Brasil colonial. O historiador Alencastro explica:
“A partir de 1550, todos
os “ciclos” brasileiros – o do açúcar, o do ouro e o do café – derivam do ciclo
multissecular de trabalho escravo resultante da pilhagem do continente
africano. O tráfico negreiro vai irrigar os desdobramentos regionais e
setoriais da economia mineira, permitindo o desenvolvimento simultâneo das
diferentes zonas produtivas: a indústria açucareira não só se mantém como acaba
rendendo mais que a do outro no século XVIII” (ALENCASTRO, 2000, p.353).
O trecho supracitado traz
uma informação bastante estudada quando analisamos a época colonial brasileira.
Contudo, na maioria das vezes que estudamos os ciclos econômicos da história
colonial, não conectamos que quem produziu toda a riqueza do ouro, açúcar e o
café foram os escravizados vindos coercitivamente da África. Outro fator que
pesa sobre a trajetória negra no território nacional é que durante o regime
escravocrata, chegaram a desembarcar no litoral do brasileiro cerca de cinco
milhões e oitocentos mil seres humanos para serem escravizados (SLAVE VOYAGES,
2017).
Dentro desse contexto de
laços estreitos com o continente africano devemos perceber que a educação de
jovens e adultos tem, em seus fundamentos, a emancipação das massas excluídas,
além disso, seus conteúdos curriculares e as práticas pedagógicas devem estar
mais próximos do educando possível (CAPUCHO, 2012). Nesse sentido a EJA dentro
das suas matrizes curriculares para o ensino de história tem uma obrigação
especial em considerar a Lei
nº 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura africana e
afro brasileira. Outro ponto fundamental para o ensino da EJA é
que esse espaço não pode ser um ambiente de reprodução dos “preconceitos,
estereótipos e discriminações construídas socialmente e carregados tanto por
essa modalidade educacional” (ANDRADE, 2009).
Esse aspecto contra
hegemônico da EJA de sempre se opor aos preconceitos enraizados na sociedade
brasileira referente à população negra e trabalhadora, tem como auxílio o
currículo escolar emancipatório alinhado a Lei nº 10.639/03.
Lei
nº 10.639/03 no currículo escolar
Entendendo que os estabelecimentos de
ensino são ambientes multiculturais e plurirraciais acreditamos que diante de
currículos e propostas pedagógicas que valorizem a aprendizagem da história e
da memória de povos de todo o mundo e da cultura que cerca a sociedade,
ter-se-á uma sociedade mais justa, igualitária e comprometida com a
disseminação das suas raízes culturais. Assim, a Lei nº 10.639/03 vem como uma
forma de garantir que tais instrumentos de aprendizagem sejam disponibilizados para
milhões de estudantes brasileiros, buscando “superar a valorização da
diversidade cultural como mero folclore, tentando articular essa valorização
com o desafio às desigualdades e a construção das diferenças a elas associadas”
(CANEN, 2004, p.113).
O Brasil é o país com a maior população
negra no mundo fora da África, no entanto as desigualdades étnicas ainda
persistem. Houve grandes avanços nos últimos anos, no combate à discriminação e
nas políticas afirmativas, uma delas é a Lei 10.639/03 que tornou obrigatório
em todas as escolas do país, o ensino de história da África e de história e
cultura afro-brasileira e, mais tarde, a Lei 11.645/08, expandiu o alcance
dessa obrigatoriedade implementando o ensino de história e cultura indígena. Essas novas leis reconhecem a memória e as
contribuições afro-brasileiras. No Brasil, se cruzam dois movimentos
ideológicos de dominação sobre os brasileiros, o da ideologia da dominação
racial, que ao propagar “idéias de inferioridade do negro justificava a escravização
dos africanos e o mito da democracia racial, que ao negar a estrutura racista
brasileira, naturalizou as desigualdades sociais” (ROCHA, 2009, p. 54).
Conforme Heymann e Arruti analisam a Lei
10.639/03 se encaixa mais como a rejeição à marginalização e busca de inclusão
social do que como afirmação de uma identidade exclusiva ou alguma forma de
separatismo (HEYMANN; ARRUTI, 2012, p. 112). Além disso, a Lei 10.639/03
desempenha um papel muito importante para a desconstrução dessas ideologias de
dominação, para a valorização dos brasileiros negros e também auxiliam na
“descolonização” dos currículos educacionais brasileiros. Essa lei contribui
para a construção de uma educação livre de racismo, no momento em que tornam
“público os estudos sobre a questão afro-brasileira e africana”. Ademais, essa
lei contribui para o processo de “superação da perspectiva eurocêntrica de
conhecimento tornando-se um desafio para a escola, os educadores e para a
formação docente em geral” (GOMES, 2012, p. 105-107).
A Lei 10.639/03 se encaixa perfeitamente no
que os autores Heymann e Arruti ressaltaram a cerca do reconhecimento de
memória nacional, eles destacam que:
“[...] aqui (no Brasil) estaria em jogo,
sobretudo, a memória da diversidade [...] no Brasil, as lutas por reconhecimento
e direitos de grupos minoritários emergem da valorização da diversidade étnica
e cultural e da denúncia de uma situação histórica de desigualdade e exclusão
[...]” (HEYMANN; ARRUTI, 2012, p. 114).
Ou seja, a Lei 10.639/03 vem para livrar da
marginalização histórica grupos minoritários reivindicando assim o dever de
memória, história e justiça. Além disso, em relação a EJA essa lei contribui
positivamente para o projeto de educação emancipadora da classe trabalhadora
que está contida na cerne da EJA.
Outro ponto que pesa a favor da
aplicabilidade da Lei 10.639/03 na disciplina de história e nas turmas de EJA
tem relação as que as atuais concepções da história social prezam por uma
abordagem histórica que não se paute somente nos feitos dos “heróis”. Os
“novos” sujeitos históricos esquecidos e relegados a subalternidade agora tem
peso relevante no ensino de história (BERUTTI; MARQUES, 2009). Se tratando da
história do Brasil, percebemos que os sujeitos negros escravizados por mais de
300 anos se encaixam nesse grupo social abandonado pelas antigas abordagens
historiográficas na disciplina escolar de história. Essa perspectiva
historiográfica que possibilita a “incorporação de novos sujeitos, provenientes
de setores populares” (BITTENCOURT, 2009) gera a necessidade de novas propostas
curriculares que estejam de acordo a Lei 10.639/03 e as concepções da EJA.
Considerações
finais
Buscou-se abordar nesse trabalho o entendimento a respeito da importância
de um projeto emancipador para os alunos negros e trabalhadores da EJA. Para
isso abordamos aqui o peso da Lei 10.639/03 na disseminação da memória
das contribuições africana e afro-brasileiras na construção nacional. Nosso
entendimento nesse estudo é de que o currículo escolar pode contribuir positivamente
para uma abordagem valorativa das contribuições afro-brasileira e africanas na
disciplina de história na modalidade de ensino da EJA. A escolha pelas turmas
de EJA se deu pelo fato dessa modalidade de ensino estar associada diretamente
a classe negra trabalhadora e que sofre pesadas consequências por viver em um
país com latentes cicatrizes históricas da escravidão, que permeiam a vida de
todos os trabalhadores negros do Brasil.
Referências Bibliográficas
David Richard Martins Motta. Licenciado
em História pela UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Estudante de Pós-graduação pelo IFRJ - Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio de Janeiro. E-mail:mottacell@yahoo.com.br
ALENCASTRO, Luiz Felipe. O
trato dos viventes – formação do Brasil no Atlântico Sul - Séculos XVI e XVII.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CIAVATTA,
Maria; RUMMERT, Sonia Maria. As implicações políticas e pedagógicas do
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& Sociedade. Campinas, v.31, n.111, p. 461-480, abril/junho. 2010. ISSN
0101-7330. Disponível em:<http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302010000200009>.
Acesso em: 18 nov. 2017.
SLAVE
VOYAGES, Análise de Tráfico de Escravos. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/>.
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VENTURA,
Jaqueline Pereira. Educação de Jovens e Adultos ou educação da classe
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302 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade
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CANEN, Ana. Novos olhares sobre a produção científica em educação superio:contribuições
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Flávio; MARQUES, Adhemar. Ensinar e Aprender História. Belo Horizonte:
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BITTENCOURT,
Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São
Paulo: Cortez, 2009.
Diante da discussão apresentada no artigo, gostaria de obter do autor, se possível, suas sugestões metodológicas/didáticas, logo estratégias de ensino que possam auxiliar na transposição pedagógica da lei 10.639/2003 para o cotidiano da sala de aula das turmas da Eja.
ResponderExcluirAntonio José de Souza
Boa Tarde José, tudo bem?
ResponderExcluirOs questionamentos nesse texto a respeito da abordagem didática nas turmas da EJA, trazem o sentido de emancipação e consciência crítica nas abordagens étnico-raciais nas turmas desse segmento. Quero deixar claro que não existe receita pronta que professores de EJA devem seguir, mas entendo que as concepções da Lei 10.639/03 somado ao entendimento básico que a EJA é uma modalidade de ensino destinada primeiramente a classe trabalhadora, cooperarão para uma abordagem que respeite e use as experiencias de vida e de classe do alunado da EJA no cotidiano escolar. Somando-se também os aspectos étnicos emancipatórios da Lei 10.639/03.
David Richard Martins Motta
Primeiramente parabéns por sua pesquisa que enfoca os estudantes do EJA, que por muitas vezes acabam sendo invisibilizada perante a conjuntura educacional, além de evidenciar a importância do cumprimento da Lei 10.639/03. Ao ler seu artigo lembro de depoimentos de professoras que dão aula a turmas do EJA, que relatam a presença de jovens alunos com seus 17 anos, marcados por suas expressões corporais e linguísticas que por muitas vezes são reprimidas na sociedade, inclusive dentro das escolas. O que o autor tem a comentar sobre o acréscimo de estudantes tão jovens no EJA, existe algum fato determinante? Para além das lei 10.639/03 e Lei 11.645/08 ( ensino da história indígena brasileira), na sua perceptiva, o que mais é necessário fazer para uma maior pluralidade de ensino?
ResponderExcluirPatrick Freire Machado
Olá Patrick, boa tarde!
ResponderExcluirSobre as atuais características do alunado da EJA observamos que ocorre uma espécie de juvenilização dentro dessa modalidade. Sobre esse fenômeno, penso que a Resolução CNE/CEB 3/2010 que alicerça as diretrizes operacionais da EJA tem influência acerca da entrada maciça de adolescentes nas turmas de Educação de Jovens e Adultos. Essa resolução demarca os 15 anos como idade mínima para que um aluno possa frequentar as turmas de EJA. Em via de regra as escolas enviam seus alunos repetentes ou "alunos problemáticos" para essas turmas noturnas, afim de "se livrar" de alguma forma desse problema. O fato é que muitas das escolas negligenciam seus alunos enviando maciçamente adolescentes para as classes d EJA.
Sobre a pluralidade no ensino eu penso em uma perspectiva multiculturalista e transdisciplinar dentro dos ambientes de ensino. Mas acredito que estamos enormemente distante dessa realidade.
Link da Lei: http://images.ig.com.br/educacao/eja.pdf
David Richard Martins Motta
Boa noite, parabenizo pelo importante trabalho no âmbito da Educação de Jovens e Adultos, visto que a maioria dessas pesquisas se dão na área da Pedagogia. É de suma importância historiadores voltarem seu olhar para esse público, já que como você salienta é objetivado para alcançar a classe trabalhadora. Porém, hoje podemos ver uma grande diversidade de alunos do EJA, o que é um grande desafio para os professores de história, principalmente ao trabalhar questões étnicas e identitárias. Diante da sua pesquisa, você já pensou em fazer um estudo de caso no sentido de perceber os discursos desses alunos e como a Lei 10.639/03 pode ser aplicada a partir desses dados?
ResponderExcluirAgradeço desde já pela resposta.
Ass: Ruhama Ariella Sabião Batista
Excelente pergunta Ruhama. Eu já cheguei a cogitar a possibilidade de fazer estudo de caso sobre questões relacionadas a identidade negra e alunos da EJA, contudo ficou apenas na possibilidade. No momento eu estou escrevendo um trabalho que investiga essas questões nos livros didáticos da EJA. O ensino de história e a EJA em conjunto é uma temática pouco estudada, vale a pena todo o tipo de contribuição nessa área. Agradeço a pergunta e o interesse na pesquisa. Abraços!
ExcluirDavid Richard Martins Motta
Excelente argumentação e escolha temática. Sobre sua pesquisa, gostaria de saber como aplicar a abordagem da lei 10.639/03, no cotidiano dos alunos da EJA, com a atuação/participação ativa dos discentes? Partindo do ponto de valorização do conhecimento que o aluno já possui sobre o assunto.
ResponderExcluirLui Fonseca do Nascimento
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirAcredito que essa aplicabilidade da Lei 10.639/03 fica a cargo tanto das próprias diretrizes dessa lei na Resolução CNE/CP n.º 1, de 17 de junho de 2004 (http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf) quanto nas próprias diretrizes da EJA no parecer CNE/CEB nº 11/2000 (http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb011_00.pdf).
ExcluirSobre os conhecimentos já formados no mundo do trabalho pelos educandos da EJA, acredito que em sua maioria os alunos pouco entendem de relações étnico-raciais. Penso também que o professor não pode ser o único responsável por essa abordagem antirracista. Deve ser política da escola uma abordagem livre de preconceitos e esteriótipos.
Agradeço a pergunta, abraços Lui!
David Richard Martins Motta