David Richard Martins Motta


RELEVÂNCIA DA LEI Nº 10.639/03 NO CURRÍCULO ESCOLAR DA EJA


Pontuando os alicerces da Educação de Jovens e Adultos (EJA) nos aspectos emancipatórios voltados para a classe trabalhadora, o presente trabalho busca destacar a relevância desses preceitos somados a Lei nº 10.639/03. Esse estudo destaca a importância da abordagem valorativa das contribuições afro brasileira e africanas na disciplina de história na modalidade de ensino da EJA.

Para nos situarmos é preciso pontuar que a Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma categoria de ensino destinada aos jovens e adultos que não tiveram acesso ou que por algum motivo não puderam concluir o ensino na idade própria. O que descrevemos aqui como “aspectos emancipatórios da EJA” é o entendimento que a Educação de Jovens e Adultos tem em seu cerne práticas e reflexões que favorecem a consciência crítica e a emancipação do educando (VENTURA, 2008). Dentro desse contexto percebemos também que a EJA está associada diretamente a classe trabalhadora (CIAVATTA; RUMMERT, 2010) não uma classe trabalhadora qualquer, mas uma que, em sua maioria, é negra, e sofre pesadas consequências por viver em um país com latentes cicatrizes históricas da escravidão, que permeiam a vida de todos os trabalhadores negros do Brasil.

Nesse sentido, seguindo os aspectos emancipatórios da Educação de Jovens e Adultos que se relaciona com a valorização e respeito à cerca das origens do alunado o presente trabalho se propõe a analisar sucintamente as contribuições da Lei 10639/03 na Educação de Jovens e Adultos.

Para entendermos a importância de um projeto emancipador para os alunos negros e trabalhadores da EJA, temos que antes de tudo entender a trajetória histórica da diáspora africana no Brasil.

Desde os primórdios da colonização do Brasil, a mão de obra negra escravizada foi engrenagem motriz para a saúde econômica do Brasil colonial. O historiador Alencastro explica:

“A partir de 1550, todos os “ciclos” brasileiros – o do açúcar, o do ouro e o do café – derivam do ciclo multissecular de trabalho escravo resultante da pilhagem do continente africano. O tráfico negreiro vai irrigar os desdobramentos regionais e setoriais da economia mineira, permitindo o desenvolvimento simultâneo das diferentes zonas produtivas: a indústria açucareira não só se mantém como acaba rendendo mais que a do outro no século XVIII” (ALENCASTRO, 2000, p.353).

O trecho supracitado traz uma informação bastante estudada quando analisamos a época colonial brasileira. Contudo, na maioria das vezes que estudamos os ciclos econômicos da história colonial, não conectamos que quem produziu toda a riqueza do ouro, açúcar e o café foram os escravizados vindos coercitivamente da África. Outro fator que pesa sobre a trajetória negra no território nacional é que durante o regime escravocrata, chegaram a desembarcar no litoral do brasileiro cerca de cinco milhões e oitocentos mil seres humanos para serem escravizados (SLAVE VOYAGES, 2017).

Dentro desse contexto de laços estreitos com o continente africano devemos perceber que a educação de jovens e adultos tem, em seus fundamentos, a emancipação das massas excluídas, além disso, seus conteúdos curriculares e as práticas pedagógicas devem estar mais próximos do educando possível (CAPUCHO, 2012). Nesse sentido a EJA dentro das suas matrizes curriculares para o ensino de história tem uma obrigação especial em considerar a Lei nº 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura africana e afro brasileira.   Outro ponto fundamental para o ensino da EJA é que esse espaço não pode ser um ambiente de reprodução dos “preconceitos, estereótipos e discriminações construídas socialmente e carregados tanto por essa modalidade educacional” (ANDRADE, 2009).

Esse aspecto contra hegemônico da EJA de sempre se opor aos preconceitos enraizados na sociedade brasileira referente à população negra e trabalhadora, tem como auxílio o currículo escolar emancipatório alinhado a Lei nº 10.639/03.

Lei nº 10.639/03 no currículo escolar
Entendendo que os estabelecimentos de ensino são ambientes multiculturais e plurirraciais acreditamos que diante de currículos e propostas pedagógicas que valorizem a aprendizagem da história e da memória de povos de todo o mundo e da cultura que cerca a sociedade, ter-se-á uma sociedade mais justa, igualitária e comprometida com a disseminação das suas raízes culturais. Assim, a Lei nº 10.639/03 vem como uma forma de garantir que tais instrumentos de aprendizagem sejam disponibilizados para milhões de estudantes brasileiros, buscando “superar a valorização da diversidade cultural como mero folclore, tentando articular essa valorização com o desafio às desigualdades e a construção das diferenças a elas associadas” (CANEN, 2004, p.113).

O Brasil é o país com a maior população negra no mundo fora da África, no entanto as desigualdades étnicas ainda persistem. Houve grandes avanços nos últimos anos, no combate à discriminação e nas políticas afirmativas, uma delas é a Lei 10.639/03 que tornou obrigatório em todas as escolas do país, o ensino de história da África e de história e cultura afro-brasileira e, mais tarde, a Lei 11.645/08, expandiu o alcance dessa obrigatoriedade implementando o ensino de história e cultura indígena. Essas novas leis reconhecem a memória e as contribuições afro-brasileiras. No Brasil, se cruzam dois movimentos ideológicos de dominação sobre os brasileiros, o da ideologia da dominação racial, que ao propagar “idéias de inferioridade do negro justificava a escravização dos africanos e o mito da democracia racial, que ao negar a estrutura racista brasileira, naturalizou as desigualdades sociais” (ROCHA, 2009, p. 54).

Conforme Heymann e Arruti analisam a Lei 10.639/03 se encaixa mais como a rejeição à marginalização e busca de inclusão social do que como afirmação de uma identidade exclusiva ou alguma forma de separatismo (HEYMANN; ARRUTI, 2012, p. 112). Além disso, a Lei 10.639/03 desempenha um papel muito importante para a desconstrução dessas ideologias de dominação, para a valorização dos brasileiros negros e também auxiliam na “descolonização” dos currículos educacionais brasileiros. Essa lei contribui para a construção de uma educação livre de racismo, no momento em que tornam “público os estudos sobre a questão afro-brasileira e africana”. Ademais, essa lei contribui para o processo de “superação da perspectiva eurocêntrica de conhecimento tornando-se um desafio para a escola, os educadores e para a formação docente em geral” (GOMES, 2012, p. 105-107).

A Lei 10.639/03 se encaixa perfeitamente no que os autores Heymann e Arruti ressaltaram a cerca do reconhecimento de memória nacional, eles destacam que:

“[...] aqui (no Brasil) estaria em jogo, sobretudo, a memória da diversidade [...] no Brasil, as lutas por reconhecimento e direitos de grupos minoritários emergem da valorização da diversidade étnica e cultural e da denúncia de uma situação histórica de desigualdade e exclusão [...]” (HEYMANN; ARRUTI, 2012, p. 114).

Ou seja, a Lei 10.639/03 vem para livrar da marginalização histórica grupos minoritários reivindicando assim o dever de memória, história e justiça. Além disso, em relação a EJA essa lei contribui positivamente para o projeto de educação emancipadora da classe trabalhadora que está contida na cerne da EJA.

Outro ponto que pesa a favor da aplicabilidade da Lei 10.639/03 na disciplina de história e nas turmas de EJA tem relação as que as atuais concepções da história social prezam por uma abordagem histórica que não se paute somente nos feitos dos “heróis”. Os “novos” sujeitos históricos esquecidos e relegados a subalternidade agora tem peso relevante no ensino de história (BERUTTI; MARQUES, 2009). Se tratando da história do Brasil, percebemos que os sujeitos negros escravizados por mais de 300 anos se encaixam nesse grupo social abandonado pelas antigas abordagens historiográficas na disciplina escolar de história. Essa perspectiva historiográfica que possibilita a “incorporação de novos sujeitos, provenientes de setores populares” (BITTENCOURT, 2009) gera a necessidade de novas propostas curriculares que estejam de acordo a Lei 10.639/03 e as concepções da EJA.

Considerações finais
Buscou-se abordar nesse trabalho o entendimento a respeito da importância de um projeto emancipador para os alunos negros e trabalhadores da EJA. Para isso abordamos aqui o peso da Lei 10.639/03 na disseminação da memória das contribuições africana e afro-brasileiras na construção nacional. Nosso entendimento nesse estudo é de que o currículo escolar pode contribuir positivamente para uma abordagem valorativa das contribuições afro-brasileira e africanas na disciplina de história na modalidade de ensino da EJA. A escolha pelas turmas de EJA se deu pelo fato dessa modalidade de ensino estar associada diretamente a classe negra trabalhadora e que sofre pesadas consequências por viver em um país com latentes cicatrizes históricas da escravidão, que permeiam a vida de todos os trabalhadores negros do Brasil.

Referências Bibliográficas
David Richard Martins Motta. Licenciado em História pela UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Estudante de Pós-graduação pelo IFRJ - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. E-mail:mottacell@yahoo.com.br 

ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes – formação do Brasil no Atlântico Sul - Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CIAVATTA, Maria; RUMMERT, Sonia Maria. As implicações políticas e pedagógicas do currículo na educação de jovens e adultos integrada à formação profissional. Educação & Sociedade. Campinas, v.31, n.111, p. 461-480, abril/junho. 2010. ISSN 0101-7330. Disponível em:<http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302010000200009>. Acesso em: 18 nov. 2017.

SLAVE VOYAGES, Análise de Tráfico de Escravos. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/>. Acesso em: 06 dez. 2017.

VENTURA, Jaqueline Pereira. Educação de Jovens e Adultos ou educação da classe trabalhadora? Concepções em disputa na contemporaneidade brasileira. 2008. 302 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro. 2008.

ANDRADE, Eliane Ribeiro. Os jovens da EJA e a EJA dos jovens. In: PAIVA, Jane; OLIVEIRA, Inês B. de (Orgs.). Educação de jovens e adultos. Petrópolis: DP e Alli, 2009, p.35-43.

CANEN, Ana. Novos olhares sobre a produção científica em educação superio:contribuições do multiculturalismo. São Paulo: Cortez, 2004.

HEYMANN, Luciana Quillet; ARRUTI, José Maurício. Memória e reconhecimento: notas sobre as disputas contemporâneas pela gestão da memória na França e no Brasil. In: GONÇALVES, Márcia de Almeida et al. (Orgs.). Qual valor da história hoje? Rio de Janeiro: FGV, 2012, p. 96-119.

ROCHA, Luiz Carlos Paixão. Lei 10.639/03: desafios e perspectivas para a implementação dos conteúdos afro-brasileiros nas escolas. In: SOUZA, Maria Elena Viana. (Org.) Relações raciais no cotidiano escolar: diálogos com a Lei 10.639/03. Rio de Janeiro: Rovelle, 2009, p. 47-63.

GOMES, Nilma Lino. Relações Étnico-Raciais, Educação e Descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1: 2012. pp. 98-109


BERUTTI, Flávio; MARQUES, Adhemar. Ensinar e Aprender História. Belo Horizonte: RHJ, 2009.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2009.



9 comentários:

  1. Diante da discussão apresentada no artigo, gostaria de obter do autor, se possível, suas sugestões metodológicas/didáticas, logo estratégias de ensino que possam auxiliar na transposição pedagógica da lei 10.639/2003 para o cotidiano da sala de aula das turmas da Eja.

    Antonio José de Souza

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  2. Boa Tarde José, tudo bem?
    Os questionamentos nesse texto a respeito da abordagem didática nas turmas da EJA, trazem o sentido de emancipação e consciência crítica nas abordagens étnico-raciais nas turmas desse segmento. Quero deixar claro que não existe receita pronta que professores de EJA devem seguir, mas entendo que as concepções da Lei 10.639/03 somado ao entendimento básico que a EJA é uma modalidade de ensino destinada primeiramente a classe trabalhadora, cooperarão para uma abordagem que respeite e use as experiencias de vida e de classe do alunado da EJA no cotidiano escolar. Somando-se também os aspectos étnicos emancipatórios da Lei 10.639/03.

    David Richard Martins Motta

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  3. Primeiramente parabéns por sua pesquisa que enfoca os estudantes do EJA, que por muitas vezes acabam sendo invisibilizada perante a conjuntura educacional, além de evidenciar a importância do cumprimento da Lei 10.639/03. Ao ler seu artigo lembro de depoimentos de professoras que dão aula a turmas do EJA, que relatam a presença de jovens alunos com seus 17 anos, marcados por suas expressões corporais e linguísticas que por muitas vezes são reprimidas na sociedade, inclusive dentro das escolas. O que o autor tem a comentar sobre o acréscimo de estudantes tão jovens no EJA, existe algum fato determinante? Para além das lei 10.639/03 e Lei 11.645/08 ( ensino da história indígena brasileira), na sua perceptiva, o que mais é necessário fazer para uma maior pluralidade de ensino?

    Patrick Freire Machado

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  4. Olá Patrick, boa tarde!
    Sobre as atuais características do alunado da EJA observamos que ocorre uma espécie de juvenilização dentro dessa modalidade. Sobre esse fenômeno, penso que a Resolução CNE/CEB 3/2010 que alicerça as diretrizes operacionais da EJA tem influência acerca da entrada maciça de adolescentes nas turmas de Educação de Jovens e Adultos. Essa resolução demarca os 15 anos como idade mínima para que um aluno possa frequentar as turmas de EJA. Em via de regra as escolas enviam seus alunos repetentes ou "alunos problemáticos" para essas turmas noturnas, afim de "se livrar" de alguma forma desse problema. O fato é que muitas das escolas negligenciam seus alunos enviando maciçamente adolescentes para as classes d EJA.

    Sobre a pluralidade no ensino eu penso em uma perspectiva multiculturalista e transdisciplinar dentro dos ambientes de ensino. Mas acredito que estamos enormemente distante dessa realidade.

    Link da Lei: http://images.ig.com.br/educacao/eja.pdf

    David Richard Martins Motta

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  5. Boa noite, parabenizo pelo importante trabalho no âmbito da Educação de Jovens e Adultos, visto que a maioria dessas pesquisas se dão na área da Pedagogia. É de suma importância historiadores voltarem seu olhar para esse público, já que como você salienta é objetivado para alcançar a classe trabalhadora. Porém, hoje podemos ver uma grande diversidade de alunos do EJA, o que é um grande desafio para os professores de história, principalmente ao trabalhar questões étnicas e identitárias. Diante da sua pesquisa, você já pensou em fazer um estudo de caso no sentido de perceber os discursos desses alunos e como a Lei 10.639/03 pode ser aplicada a partir desses dados?

    Agradeço desde já pela resposta.

    Ass: Ruhama Ariella Sabião Batista

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    1. Excelente pergunta Ruhama. Eu já cheguei a cogitar a possibilidade de fazer estudo de caso sobre questões relacionadas a identidade negra e alunos da EJA, contudo ficou apenas na possibilidade. No momento eu estou escrevendo um trabalho que investiga essas questões nos livros didáticos da EJA. O ensino de história e a EJA em conjunto é uma temática pouco estudada, vale a pena todo o tipo de contribuição nessa área. Agradeço a pergunta e o interesse na pesquisa. Abraços!

      David Richard Martins Motta

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  6. Excelente argumentação e escolha temática. Sobre sua pesquisa, gostaria de saber como aplicar a abordagem da lei 10.639/03, no cotidiano dos alunos da EJA, com a atuação/participação ativa dos discentes? Partindo do ponto de valorização do conhecimento que o aluno já possui sobre o assunto.

    Lui Fonseca do Nascimento

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Acredito que essa aplicabilidade da Lei 10.639/03 fica a cargo tanto das próprias diretrizes dessa lei na Resolução CNE/CP n.º 1, de 17 de junho de 2004 (http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf) quanto nas próprias diretrizes da EJA no parecer CNE/CEB nº 11/2000 (http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb011_00.pdf).
      Sobre os conhecimentos já formados no mundo do trabalho pelos educandos da EJA, acredito que em sua maioria os alunos pouco entendem de relações étnico-raciais. Penso também que o professor não pode ser o único responsável por essa abordagem antirracista. Deve ser política da escola uma abordagem livre de preconceitos e esteriótipos.
      Agradeço a pergunta, abraços Lui!

      David Richard Martins Motta

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